Por Ana Luiza Rigueto
É fim de tarde fresca. O dia amaina o ânimo rasteiro dos homens, cada qual caminha entre pensamentos desapercebidos e se refestela no azul. O mesmo corpo que contém olhos lançados ao céu, também é o que pisa, ruminante, com pés em cimento áspero.
Pela calçada
estreita vem mulher de cachos na altura dos ombros, castanhos. Ela pisa, pé
ante pé, pendendo para a direita e recuperando o eixo vertical. Pisa, ameaça,
e volta. De nascença veio-lhe a perna direita um tanto de nada mais curta.
Seria mesmo
coincidência, se de coincidências fôssemos, agora reparar que em sua direção
vem vindo homem uns quinze anos mais velho, e mais manco também – não de
nascença, foi acidente. Os dois reparam no elo comum que os caracteriza. A
mulher se consola, gabando-se para si de que manca um pouco menos. O homem se
põe em melhor estima franzindo mais o cenho e erguendo levemente os ombros para
mostrar que, na verdade, não pode ser comparado àquela mulher por ser coxo, já
que, pelo porte, é um tanto mais altivo.
De outra calçada,
jovem aloirada nota duas pessoas mancas se cruzarem logo adiante, mas que o
homem, além de bastante grisalho, é também bastante mais manco que a mulher.
Logo esquece. Vira a esquina e avista, a uns dez metros, sua avó com sacolas de
mercado dos dois lados do corpo em mãos enrugadas. A velha anda devagar, as
pernas bambeiam. Atrás dela, espanando os joelhos com mãos recentes e lisas, menino
de cabelos negros em tigela, idade pra cá dos sete. Logo chega mulher de
cabelos, também negros, presos em rabo de cavalo, os mesmos olhos. Apanha-o no
colo e verifica seus joelhos, escoriados. O menino acabara de ter sua corrida
interrompida por um tropeço, não chorou.
No prédio atrás
deles, descendo as escadas da portaria, homem de meia idade leva no colo
cachorro débil e ofegante, idade pra lá dos doze, preto e peludo, no fundo dos
olhos, um espelho opaco e azul – enxergava pouco. Carro branco sai da garagem
do prédio. Dele, mulher vestindo roupas macias de ficar em casa, abre a porta
traseira do carro, espera o homem ajeitar o cachorro no banco e sentar-se junto.
Entra rapidamente no carro e partem.
Já em casa, mulher
de cachos castanhos assiste a seu programa de culinária preferido, tem fome e
liga para o seu restaurante japonês delivery preferido. Atende senhor muito
simpático que já reconhece sua voz no “alô”, logo a cumprimenta. Ele é manco,
apesar de ao telefone não ser possível saber, e depois de dizer que o pedido
chega em meia hora e desligar, reflete de novo se é melhor do que boa parte dos
mancos que existem, e se alguém notara hoje mais cedo que ele é superior à
mulher com quem cruzara. Esta, que não pensou mais no assunto, torce para que sua
comida venha logo, e imagina que o senhor que atende as ligações no restaurante
deva ser um velhinho de olhos puxados e sempre gentil.
A velhinha
esqueceu de comprar tomates e volta ao mercado, contrariando a sugestão da neta
de que é melhor evitar muito esforço, para não fazer aumentar a pressão. A jovem
já está na clínica veterinária em que trabalha. Lá, todos estão espantados com
o caso do cachorro preto que deu entrada no final da tarde: tem um tumor no
coração, caso raríssimo.
Sentado à mesa,
menino com joelho escoriado chora porque não quer comer tomate colocado em seu
prato pela mãe. O telefone toca, ele pula da cadeira e vai atender. É para a mãe.
A tia tal, aquela dos cachinhos castanhos, quer saber se por acaso querem
adotar um cachorrinho, que uma amiga apanhou na rua e não pode ficar, é filhote
ainda. Mãe e filho esquecem do tomate. Os tomates já estão na fruteira, finalmente
não precisa de mais nada: a velha liga a TV, deita e dorme...
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