terça-feira, 7 de julho de 2015

Narrativa de uma cachorrinha

Por Ana Luiza Rigueto


Lembro-me com certa vagueza, uma memória afixada pelo olfato em minhas sinapses caninas, que sou filha de uma cachorrinha andarilha. Vim de uma ninhada de quatro, todos cachorrinhos malhados. Recordo-me do calor da barriga de mamãe, calor macio em meio de meus irmãos. Calor que assemelha-se a quando me refestelo em almofadas moles depois de algum tempo, quando estão aquecidas.

Enfim, lembro-me disto, nós todos unidos, um. Vieram, então, mãos do destino, apanharam um, outro, depois eu e o último. Nossos olhinhos mal enxergavam, nos colocaram numa superfície lisa e fria, ladeada por paredes iguais ao chão - mais tarde soube, era caixa de papelão. Ajuntamo-nos todos, sem mamãe, e o calor se refez, mesmo arrefecido. Adormeci. Acordei com outras mãos levando meus irmãos. Dessa vez quando me levantaram não restava mais nenhum outro.

Me acolheram, depois aprendi, em braços humanos. E eu, tão só, adormeci. Abri os olhos e não vi mais meus companheiros de ninhada. Aos poucos soube que o amor que meus humanos dão é bom, apesar de o corpo deles não ser tão macio. Aprendi amá-los de volta bem rapidinho. Somos alegres juntos, é bom estar junto. De início senti muito a falta de mamãe e dos três cachorrinhos. Depois aceitei que não mais os veria.

Hoje me veio essa memória. Culpa de um encontro fortuito. Eu nunca estive tão alegre e tão triste.

Estava passeando com meu humano, farejando e escutando cheiros e barulhos longínquos. De repente um odor irrompeu em minhas narinas e de súbito me recordei do primeiro dia em que o havia sentido. Saí em disparada. Mamãe sentada numa esquina, com uma coleira cor de rosa o pescoço e pendendo solta. Já me esperava, tinha o focinho farejando em minha direção.

Fui ter com ela. Cheiramo-nos com alegria incontida, os rabos espanando na velocidade da luz. Mais tarde soube que me lancei tão de súbito que meu humano não teve como manter a coleira segura nas mãos, estive livre. Cheirando mamãe, soube de toda a sua história, compreendi, era triste.  Gemi baixinho, uivei alto. De mamãe, só escutei um grunhido, mais como um choro contido.

Logo chegou meu humano, olhou curioso a cena – eu e ela temos as mesmas orelhas malhadas de ruivo e branco. Mamãe lambia melancólica a minha orelha. E eu recebia aquele carinho que era despedida.

Cheguei em casa, todas as coisas estavam tristes, desabei. Passaram-se dias, nenhum estímulo me movia. Meus humanos vinham até mim, afagavam meus pelos, falavam tons de dúvida e consolo, se iam. Duas vezes me levantei para beber água, duas vezes fiz xixi. Meus humanos perece que compreenderam. Depois soube que fiquei assim três dias inteiros.

No quarto dia, espreguicei-me e espantei o desânimo com um bocejo. Comi, bebi água, fiz cocô, fui espreitar a movimentação pela janela. Eu já me esquecera o enredo da triste história que soube de mamãe. Não porque quisesse: é da natureza dos cachorros digerir. Mas guardei comigo umas coisas que conheci daquela que me pariu.

O que meus humanos chamam de “cachorro de rua”, aprendi que para mamãe é ser andarilha. Alguma coisa no cheiro dela não é a mesma, deve ser porque tiraram-lhe a parte de dentro de fêmea. Sei que houve uma fuga. E depois da ninhada em que vim, houve pelo menos outra. Não lembro a ordem das coisas. Não importa. 

Passando hoje de novo naquela esquina, senti límpido o cheiro de mamãe. Aí lembrei-me do aconchego primeiro que conheci ficando, da caixa, dos meus irmãos, tudo ficando para trás. Uma lembrança, não houve tristeza ou lamento. Uma lembrança. As vezes um cheiro me faz lembrar mamãe. Se um dia eu a encontrar de novo, penso que vou sentir a mesma alegria.