terça-feira, 21 de abril de 2015

Tarde fresca, tomates frescos

Por Ana Luiza Rigueto

É fim de tarde fresca. O dia amaina o ânimo rasteiro dos homens, cada qual caminha entre pensamentos desapercebidos e se refestela no azul. O mesmo corpo que contém olhos lançados ao céu, também é o que pisa, ruminante, com pés em cimento áspero.

Pela calçada estreita vem mulher de cachos na altura dos ombros, castanhos. Ela pisa, pé ante pé, pendendo para a direita e recuperando o eixo vertical. Pisa, ameaça, e volta. De nascença veio-lhe a perna direita um tanto de nada mais curta.

Seria mesmo coincidência, se de coincidências fôssemos, agora reparar que em sua direção vem vindo homem uns quinze anos mais velho, e mais manco também – não de nascença, foi acidente. Os dois reparam no elo comum que os caracteriza. A mulher se consola, gabando-se para si de que manca um pouco menos. O homem se põe em melhor estima franzindo mais o cenho e erguendo levemente os ombros para mostrar que, na verdade, não pode ser comparado àquela mulher por ser coxo, já que, pelo porte, é um tanto mais altivo.

De outra calçada, jovem aloirada nota duas pessoas mancas se cruzarem logo adiante, mas que o homem, além de bastante grisalho, é também bastante mais manco que a mulher. Logo esquece. Vira a esquina e avista, a uns dez metros, sua avó com sacolas de mercado dos dois lados do corpo em mãos enrugadas. A velha anda devagar, as pernas bambeiam. Atrás dela, espanando os joelhos com mãos recentes e lisas, menino de cabelos negros em tigela, idade pra cá dos sete. Logo chega mulher de cabelos, também negros, presos em rabo de cavalo, os mesmos olhos. Apanha-o no colo e verifica seus joelhos, escoriados. O menino acabara de ter sua corrida interrompida por um tropeço, não chorou.

No prédio atrás deles, descendo as escadas da portaria, homem de meia idade leva no colo cachorro débil e ofegante, idade pra lá dos doze, preto e peludo, no fundo dos olhos, um espelho opaco e azul – enxergava pouco. Carro branco sai da garagem do prédio. Dele, mulher vestindo roupas macias de ficar em casa, abre a porta traseira do carro, espera o homem ajeitar o cachorro no banco e sentar-se junto. Entra rapidamente no carro e partem.

Já em casa, mulher de cachos castanhos assiste a seu programa de culinária preferido, tem fome e liga para o seu restaurante japonês delivery preferido. Atende senhor muito simpático que já reconhece sua voz no “alô”, logo a cumprimenta. Ele é manco, apesar de ao telefone não ser possível saber, e depois de dizer que o pedido chega em meia hora e desligar, reflete de novo se é melhor do que boa parte dos mancos que existem, e se alguém notara hoje mais cedo que ele é superior à mulher com quem cruzara. Esta, que não pensou mais no assunto, torce para que sua comida venha logo, e imagina que o senhor que atende as ligações no restaurante deva ser um velhinho de olhos puxados e sempre gentil.

A velhinha esqueceu de comprar tomates e volta ao mercado, contrariando a sugestão da neta de que é melhor evitar muito esforço, para não fazer aumentar a pressão. A jovem já está na clínica veterinária em que trabalha. Lá, todos estão espantados com o caso do cachorro preto que deu entrada no final da tarde: tem um tumor no coração, caso raríssimo.

Sentado à mesa, menino com joelho escoriado chora porque não quer comer tomate colocado em seu prato pela mãe. O telefone toca, ele pula da cadeira e vai atender. É para a mãe. A tia tal, aquela dos cachinhos castanhos, quer saber se por acaso querem adotar um cachorrinho, que uma amiga apanhou na rua e não pode ficar, é filhote ainda. Mãe e filho esquecem do tomate. Os tomates já estão na fruteira, finalmente não precisa de mais nada: a velha liga a TV, deita e dorme...