Por Ana Luiza Rigueto
Lembro-me com certa vagueza, uma memória afixada pelo olfato em minhas sinapses caninas, que sou filha de uma cachorrinha andarilha. Vim de uma ninhada de quatro, todos cachorrinhos malhados. Recordo-me do calor da barriga de mamãe, calor macio em meio de meus irmãos. Calor que assemelha-se a quando me refestelo em almofadas moles depois de algum tempo, quando estão aquecidas.
Enfim, lembro-me disto, nós todos unidos, um. Vieram, então, mãos do destino, apanharam um, outro, depois eu e o último. Nossos olhinhos mal enxergavam, nos colocaram numa superfície lisa e fria, ladeada por paredes iguais ao chão - mais tarde soube, era caixa de papelão. Ajuntamo-nos todos, sem mamãe, e o calor se refez, mesmo arrefecido. Adormeci. Acordei com outras mãos levando meus irmãos. Dessa vez quando me levantaram não restava mais nenhum outro.
Me acolheram, depois aprendi, em braços humanos. E eu, tão só, adormeci. Abri os olhos e não vi mais meus companheiros de ninhada. Aos poucos soube que o amor que meus humanos dão é bom, apesar de o corpo deles não ser tão macio. Aprendi amá-los de volta bem rapidinho. Somos alegres juntos, é bom estar junto. De início senti muito a falta de mamãe e dos três cachorrinhos. Depois aceitei que não mais os veria.
Hoje me veio essa memória. Culpa de um encontro fortuito. Eu nunca estive tão alegre e tão triste.
Estava passeando com meu humano, farejando e escutando cheiros e barulhos longínquos. De repente um odor irrompeu em minhas narinas e de súbito me recordei do primeiro dia em que o havia sentido. Saí em disparada. Mamãe sentada numa esquina, com uma coleira cor de rosa o pescoço e pendendo solta. Já me esperava, tinha o focinho farejando em minha direção.
Fui ter com ela. Cheiramo-nos com alegria incontida, os rabos espanando na velocidade da luz. Mais tarde soube que me lancei tão de súbito que meu humano não teve como manter a coleira segura nas mãos, estive livre. Cheirando mamãe, soube de toda a sua história, compreendi, era triste. Gemi baixinho, uivei alto. De mamãe, só escutei um grunhido, mais como um choro contido.
Logo chegou meu humano, olhou curioso a cena – eu e ela temos as mesmas orelhas malhadas de ruivo e branco. Mamãe lambia melancólica a minha orelha. E eu recebia aquele carinho que era despedida.
Cheguei em casa, todas as coisas estavam tristes, desabei. Passaram-se dias, nenhum estímulo me movia. Meus humanos vinham até mim, afagavam meus pelos, falavam tons de dúvida e consolo, se iam. Duas vezes me levantei para beber água, duas vezes fiz xixi. Meus humanos perece que compreenderam. Depois soube que fiquei assim três dias inteiros.
No quarto dia, espreguicei-me e espantei o desânimo com um bocejo. Comi, bebi água, fiz cocô, fui espreitar a movimentação pela janela. Eu já me esquecera o enredo da triste história que soube de mamãe. Não porque quisesse: é da natureza dos cachorros digerir. Mas guardei comigo umas coisas que conheci daquela que me pariu.
O que meus humanos chamam de “cachorro de rua”, aprendi que para mamãe é ser andarilha. Alguma coisa no cheiro dela não é a mesma, deve ser porque tiraram-lhe a parte de dentro de fêmea. Sei que houve uma fuga. E depois da ninhada em que vim, houve pelo menos outra. Não lembro a ordem das coisas. Não importa.
Quanto sentimento! Lindo lindo e lindo
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